Telefone: +55 11 3862-1703

Whatsapp: +55 11 98273-0550

Elisabeth Antonelli
março 17, 2023

Twitter
Facebook
WhatsApp
LinkedIn
Copy Link

Margens ou bordas

As patologias do narcisismo (difícil acesso, borderline, estados–limites, falso-self, etc…) trazem à cena como tema instigante as múltiplas possibilidades de ser-no-mundo.

Se Freud ao postular a psicanálise baseou-se na sua “neurótica”, cujo complexo central e organizador é o complexo de Édipo e sua resolução tão afeita aos ditames do capitalismo, o que se torna um operador da cultura, da manutenção de um status quo amplamente reconhecido, na clínica das patologias do narcisismo este operador já não surte os efeitos desejados.     

O paciente de difícil acesso (borderline) que chega aos nossos consultórios carece de noção de autoridade, dado que esta noção é resultante da identificação com a figura de autoridade, insuficientemente operada. Cabe ressaltar, entretanto que este processo de identificação, o fazem às bordas do sistema representacional, e em termos de comportamento acabam por se situar às margens do estabelecido. Mais propriamente falando são pacientes que habitam o território materno, não saíram do quintal de casa, por assim dizer.

O que temos presenciado – cada vez mais freqüentemente na clínica psicanalítica – é que o motivo, “a queixa” que leva um indivíduo a buscar o auxílio psicanalítico é o sofrimento gerado por sua incapacidade de lidar consigo mesmo (com sua vida emocional) e com a avalanche de informações que o mundo midiatizado traz para cada um de nós, a nosso ver característica da pós-modernidade. As feridas narcísicas que nossos pacientes apresentam vêm sangrando. Segundo Balint (1993) [1], tais pacientes não são atingidos pelas interpretações habituais que o analista costuma oferecer, pois não se trata de pacientes do nível edipiano em termos do desenvolvimento psicossexual. Esse autor separa os pacientes em dois grupos e denomina o grupo que pretendo estudar como o daqueles situados no nível da falha básica[2]. Pacientes da “falha básica” encontram extrema dificuldade para lidar com as exigências da realidade, por terem muito trabalho em administrar sua própria precariedade. Como não ascenderam ao nível edipiano do desenvolvimento psicossexual, questões em relação ao superego brotam de maneira desorganizada, ora num zelo e temor excessivos – fenômeno que corrobora a hipótese kleiniana de uma precocidade e severidade do superego, ora num total descaso em relação às figuras de autoridade – fenômeno que confirma a idéia de um sistema inacabado, carente de representação que garanta uma sustentação psíquica. 

Acontecimentos de toda sorte ameaçam a integridade de cada um de nós, e a ocorrência de fatos traumáticos – que excedem a capacidade psíquica do indivíduo – se avoluma de tal maneira com a desestruturação da família e dos costumes, que o nosso paciente se vê assoberbado por questões que certamente não inquietavam os analisandos de Freud na sociedade austríaca do começo do século XX. Segundo Winnicott[3] (1983), tais pacientes foram vítimas de um ambiente que não forneceu condições para que o psiquismo nascente pudesse encontrar uma ancoragem confiável. Segundo o autor (1983, p.106):

Nós agora vemos o ego da criança como algo dependente inicialmente de um ego auxiliar, algo que aproveita a estrutura e a força do sistema altamente complexo e sutil de adaptação às necessidades, sendo essa adaptação suprida pela mãe ou pela substituta da mãe. Vemos também o interessante processo de absorção, na criança, dos elementos do cuidado com a criança, aqueles que poderiam ser chamados ‘do ego auxiliar’. A relação entre essa absorção do meio e o processo de introjeção com o qual já estamos familiarizados gera grande interesse.

Emprego, moradia, segurança – enfim, questões de uma certa urgência – trazem para a análise os pacientes que se sentem incapacitados para lidar com tantos aspectos e consigo mesmos, traduzindo-se isso em um estado de desamparo, em um renovado sentimento de desamparo.

Num certo sentido, a procura pela análise, já de início, é uma busca de algo que a psicanálise não pode dar. Em alguns casos, os pacientes chegam para a análise com a própria constituição psíquica em risco iminente de desmoronamento, o que se traduz por um não saber de si, a não ser como vítima passiva de toda sorte de acontecimentos (incluindo-se os acontecimentos internos). Quando esses indivíduos aparecem em busca de análise, trata-se de um recurso parcamente investido.

Esses pacientes precisariam, a bem da verdade, de um milagre que os transformasse em outras pessoas, ou em pessoas. Formulam-se as mais variadas queixas, mas não encontramos sinal de demanda: precisamos ajudar esse analisando a articulá-la. Assim, deparamo-nos com um tipo de situação clínica diante da qual devemos desenvolver dispositivos que nos possibilitem uma conversa originada quase que exclusivamente do sensorial, para assim torná-la verbo.

A possibilidade de pensar uma forma de subjetivação que possui sua própria espessura ontológica e que possa dialogar com as formas culturais em constante renovação é a perspectiva que pretendi apontar neste texto. A contribuição de Armony[4] caminha neste sentido e minha própria pesquisa[5] e trabalho na clínica tem apontado na direção de abarcar estas novas formas do humano se manifestar, mesmo que aquém do sistema representacional que tem na possibilidade do discurso seu apoio. Esta clínica demanda do analista um cuidado para observar as formas de manifestação do psiquismo não discursivas.

Ao se deparar com a necessidade de uma comunicação verdadeira e viva, como é a exigência fundamental de pacientes psicóticos, Armony (1998) se debruça na questão dos processos de comunicação envolvidos e, ao se deter nesta questão a positividade borderline se revela: para além da patologia, evidencia-se uma forma de subjetivação que, embora não afeita aos ditames do capitalismo, com sua exigência de produtividade, sob a égide das insígnias fálicas, pode contribuir a partir da relação dual, com as questões que brotam sob a égide do matriarcado: sensibilidade infantil, a capacidade de identificação dual porosa, a apreensão conjuntiva, a empatia.

Na interface da psicanálise com a comunicação o autor distingue três níveis de comunicação: relação de tarefa, relação de depositação e relação diríamos mista, de tarefa e de depositação.

Segundo Armony: “falar em comunicação é ao mesmo tempo falar de conhecimento, relação, em suma, é falar de subjetividade. Para permitir o desenvolvimento de uma forma de comunicação e relação que ficará em vigor durante seu tempo próprio de duração, o analista se coloca em disponibilidade para a identificação: neste estado, em que ele se torna o centro emissor/receptor de mensagem, em que ele possibilita o aparecimento dos desejos/temores/sentimentos/subjetividade do analisando, ele, o analista, pode perceber em um primeiro momento as grandes linhas de comunicação/relação, as grandes linhas da subjetividade que estão se estabelecendo (p. 30)”.

Desse modo Armony vai estudar as identificações como campo privilegiado para as tentativas de compreensão e acesso às formas de comunicação expressivas, pouco afeitas ao campo da comunicação verbal. Dos três níveis de comunicação temos: o neurótico que estabelece uma relação de tarefa, o psicótico que estabelece uma relação de depositação e o borderline fazendo uso simultâneo das duas modalidades de relação. Desse modo vai se caracterizando um tipo de funcionamento instável, que ora conhece as regras, ora não as segue, por impossibilidade de acesso ás dimensões simbólicas, de modo estável.

A identificação dual–porosa é um conceito que brota particularmente da clínica deste tipo de paciente: “sujeito que carrega como memória da infância uma fome de identificações; fome semelhante à da criança que necessita de se identificar com adultos significativos para fabricar sua identidade. Quando as identificações falham ou são insuficientes, o ser humano cresce com as valências identificatórias abertas. O fator borderline da personalidade poderia ser pensado em conexão com as identificações insuficientemente realizadas”. (p. 84).

O autor chama a atenção para a criação de um conceito de identificação “que não mais se balize em um psiquismo individual, mas que seja puro movimento, pura criação contínua de dois seres em interação” (p.63). Na identificação dual-porosa não há a retenção de identificações remodeladoras do ego mas uma permeabilidade das fronteiras que desfaz a configuração sujeito-objeto transformando o espaço externo-interno em lugar de intimidade.  Winnicott, com a noção de espaço potencial, fornece referência e apoio para as suas descobertas.

Download PDF


[1] BALINT, M.: A falha básica, Porto Alegre: Editora Artes Médicas Sul Ltda., 1993.

[2] Qualquer terceiro que interfira nessa relação é sentido como um pesado encargo ou uma força intolerável. Outra importante qualidade dessa relação é a imensa diferença de intensidade entre os fenômenos de satisfação e frustração. Enquanto a satisfação – ‘adaptação’ do objeto ao sujeito – traz uma sensação de bem-estar, que só pode ser observada com muita dificuldade, pois é natural e suave, a frustração – a falta de ‘adaptação’ do objeto – provoca sintomas muito intensos e tumultuosos. p.15.

[3] WINNICOTT, D. Classificação: Existe uma contribuição psicanalítica à classificação psiquiátrica? 1959-1964. In O ambiente e os processos de maturação. Porto Alegre: Artmed Editora Ltda., 1983.

[4] Armony, N.: Borderline, uma outra normalidade, RJ, Revinter, 1998.

[5] Antonelli, E.: O amor e o ódio na contratransferência: considerações sobre o lugar do analista em casos de difícil acesso, defendida em junho de 2006 no Programa de Estudos Pós Graduados em Psicologia Clínica-PUC-SP.