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Elisabeth Antonelli
março 29, 2023

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Em defesa de uma certa porosidade

Resenha de Nahman Armony, Borderline, uma outra normalidade.

Certamente este é um livro indispensável para quem deseja se aprofundar na compreensão das assim chamadas “patologias do narcisismo”.

Embora demande fôlego e certa erudição do leitor, promove um outro olhar para o paciente difícil (borderline, falso self, etc.) dos nossos tempos, trazendo à cena as descrições usualmente aplicadas para o diagnóstico diferencial e além disso mantém em foco o modo de comunicação própria desse tipo de patologia. Constitui-se uma referência para o pesquisador desse campo, descrevendo e revelando os assim chamados casos borderline como um modo de subjetivação possível, tanto em seus aspectos normais como patológicos.

O tema do livro vem ganhando terreno nas pesquisas psicanalíticas em virtude da necessidade, cada vez mais urgente, de aprofundarmos nossa compreensão acerca deste novo habitante dos nossos consultórios: paciente de difícil acesso, fronteiriço, caso-limite etc.

Segundo André Green, podemos afirmar que não temos mais um Édipo em busca da verdade, mas, sobretudo, um Hamlet em busca de si mesmo. E, nesse sentido, antes mesmo de rotulá-lo na nosografia habitual, poderíamos – e este é o convite deste livro – aproximarmo-nos desta forma de padecimento psíquico, entrando em contato com a sua espessura ontológica e seu pertencimento a este mundo não menos adoecido.

 

Um novo olhar em outra perspectiva 

Da tese de doutoramento de Nahman Armony intitulada Identificação dualporosa: emergência de um modo de comunicação, defendida em maio de 1996 na ECO da UFRJ, resulta o livro Borderline: uma outra normalidade, objeto desta resenha. Nahman teceu um entrecruzamento entre Psicanálise e Comunicação.

Como ele mesmo informa, uma tese escrita em devir: um entrelaçamento de dois cuidados, duas preocupações, duas aflições: um referido à minha profissão de psicanalista e outro ao meu ser enquanto inserido em uma cultura, em uma sociedade e em um meio ambiente (p. 3).

Inserido no pós-modernismo, enfatizando a transdisciplinariedade, fazendo uso de todos os recursos possíveis – história, antropologia, filosofia etc. – o autor nos surpreende ao preparar cuidadosamente um ninho para as bodas da psicanálise e comunicação, ninho este que terá como novo habitante o “borderline” com sua própria forma de comunicação/relação/conhecimento.

A escrita e o pensamento de Nahman, descritos por ele mesmo como tendo se originado de uma prática psicanalítica, revelam-se eivados pelo padecimento e solicitações de seus pacientes borderline que serão objeto de seu estudo e reflexão. Ao deparar com a necessidade de uma comunicação verdadeira e viva, como é a exigência fundamental de pacientes psicóticos, o autor se debruça na questão dos processos de comunicação envolvidos e, ao se deter nesta questão, a positividade borderline se revela: para além da patologia, evidencia-se uma forma de subjetivação que, embora não afeita aos ditames do capitalismo, com sua exigência de produtividade, sob a égide das insígnias fálicas, pode contribuir, a partir da relação dual, com as questões que brotam sob a égide do matriarcado: sensibilidade infantil, a capacidade de identificação dual porosa, a apreensão conjuntiva, a empatia.

Na interface da psicanálise com a comunicação, o autor distingue três níveis de comunicação: relação de tarefa, relação de depositação e relação, diríamos, mista, de tarefa e de depositação. Segundo Nahman, falar em comunicação é ao mesmo tempo falar de conhecimento, relação, em suma, é falar de subjetividade. Para permitir o desenvolvimento de uma forma de comunicação e relação que ficará em vigor durante seu tempo próprio de duração, o analista se coloca em disponibilidade para a identificação: neste estado, em que ele se torna o centro emissor/receptor de mensagem, em que ele possibilita o aparecimento dos desejos/temores/sentimentos/subjetividade do analisando, ele, o analista, pode perceber em um primeiro momento as grandes linhas de comunicação/relação, as grandes linhas da subjetividade que estão se estabelecendo (p.30).

Desse modo, Nahmann vai estudar as identificações como campo privilegiado para as tentativas de compreensão e acesso às formas de comunicação expressivas, pouco afeitas ao campo da comunicação verbal.

Dos três níveis de comunicação, temos o neurótico, que estabelece uma relação de tarefa, o psicótico, que estabelece uma relação de depositação, e o borderline,fazendo uso simultâneo das duas modalidades de relação. Desse modo, vai se caracterizando um tipo de funcionamento instável, que ora conhece as regras, ora não as segue, por impossibilidade de acesso às dimensões simbólicas, de modo estável.

A identificação dual – porosa é um conceito que brota particularmente da clínica desse tipo de paciente: sujeito que carrega como memória da infância uma fome de identificações; fome semelhante à da criança que necessita de se identificar com adultos significativos para fabricar sua identidade. Quando as identificações falham ou são insuficientes, o ser humano cresce com as valências identificatórias abertas. O fator borderline da personalidade poderia ser pensado em conexão com as identificações insuficientemente realizadas (p. 84).

O autor chama a atenção para a criação de um conceito de identificação “que não mais se balize em um psiquismo individual, mas que seja puro movimento, pura criação contínua de dois seres em interação” (p. 63). Na identificação dual-porosa, não há retenção de identificações remodeladoras do ego mas uma permeabilidade das fronteiras que desfaz a configuração sujeito-objeto, transformando o espaço externo-interno em lugar de intimidade. Winnicott, com a noção de espaço potencial, fornece referência e apoio para as suas descobertas.

 

Borderline e espaço potencial 

O tema do espaço potencial revela-se complexo até mesmo para o autor com quem mantive correspondência neste período. Para exemplificar, coloco uma de nossas conversas:

Prezada Elizabeth: há poucas horas falei da minha surpresa com a articulação entre espaço potencial e identificação dual-porosa. Pois agora estou surpreso com a minha surpresa, pois, sem dúvida, a relação dual-porosa só pode acontecer no espaço potencial. Duas pessoas ao mesmo tempo se reconhecem como separadas – e é a isto que se refere o dual – e ao mesmo tempo estão intimamente ligadas pela porosidade de suas fronteiras pessoais que permite aos dois funcionarem como unidade. Existe, portanto, uma percepção objetiva do outro – objeto objetivamente percebido – e uma constante recriação subjetiva do outro através das trocas porosas. Esta mistura de objetivo e subjetivo se passa no espaço potencial, um espaço que é potência criativa do novo e do renovado. Tanto no subjetivo puro quanto no objetivo puro as coisas ficam paradas, não marcham, não mudam. A possibilidade de mudança não está nem no espaço subjetivo puro, nem no espaço objetivo puro, mas no espaço potencial onde continuamente se criam objetos e fenômenos transicionais.

O conceito de espaço potencial vai crescendo em importância na medida em que subsidia elementos que apontam para a comunicação intersubjetiva e o aporte ao social, tão caro ao projeto de Nahman, na busca de uma compreensão das contribuições propriamente humanas que o borderline traz. Continuo citando o autor:

Se a posição depressiva não é adequadamente alcançada, a capacidade de sentir culpa fica reduzida. O sujeito poderá se relacionar com o mundo através de recursos outros que não a culpa e reparação. Winnicott fala que o borderline usa uma sofisticada organização de defesa. Isso faz com que o borderline se relacione com a realidade externa e com o semelhante de um modo diferente do neurótico. Um modo onipotente, artístico; uma recriação mágica da realidade. Se essa recriação mágica estiver conectada com o mundo circundante teremos uma atividade criativa cujo lócus é uma área intermediária (p. 63).

Embora a capacidade de sentir culpa fique reduzida, pode acontecer um esforço de reparação, mesmo que através da recriação mágica da realidade. Dizendo de outra forma, o paciente borderline mantém um contato razoável com a realidade e, em casos de progresso, consegue se aperceber como sujeito do próprio destino, mesmo que esse contato aconteça por frestas.

 

De uma normalidade de linhagem neurótica e uma normalidade de linhagem Borderline 

Para encerrar esta apresentação, esperando ter transmitido a complexidade do pensamento do autor, cumpre ressaltar a ênfase na compreensão de um modo borderline de funcionamento psíquico, bem como a importância da conceituação de uma identificação dual-porosa e de espaço potencial neste panorama.

Contrariamente a Nahman, Bergeret tem insistido na descrição de momentos borderline tais como traumatismos psíquicos atuais: passagens da vida, mudanças de país, passagem de estado civil etc. A instabilidade da personalidade se revelaria transitoriamente. Essa noção tem como inconveniente situar o borderline dentro da grande área dos transtornos de humor, o que resulta numa descaracterização, contribuindo para a geração de uma grande controvérsia sobre o estatuto dessa forma de padecimento.

Para Nahman, por outro lado, o que importa ressaltar é o que é próprio no funcionamento borderline, que ele passa a chamar de borderline brando, em contraposição ao borderline pesado (que pode apresentar surtos psicóticos episódicos) e situá-lo no esteio de uma civilização atual instável, permeável, na qual as formas de anomia transitam dia a dia com mais assiduidade. Com sua capacidade de identificação dual-porosa, abre passagem para formas de comunicação intersubjetiva para mais aquém da linguagem verbal.

Citando mais uma vez o autor, à guisa de encerramento:

De certa perspectiva, o borderline traz como restos/relíquias da infância mais arcaica uma insuficiência de identificações. Isso o conduz a uma busca de identificações alimentadoras mantendo-o aberto e poroso ao seu ambiente e às pessoas à sua volta…

Esse borderline brando da psicanálise equivale ao homem pós-moderno dos sociólogos… se fizermos uma sobreposição do perfil do borderline e do homem pósmoderno, encontraremos características comuns… Este homem, tendo preservado/readquirido sua aptidão empática e sua capacidade para a identificação dualporosa, mantém uma liberdade, flexibilidade e rapidez de deslocamento que lhe permite acompanhar a velocidade adquirida pelos acontecimentos na civilização pósindustrial… (p. 165).

Cabe ressaltar a ênfase colocada na velocidade dos acontecimentos da nossa civilização, para buscar compreender o borderline como o fiel depositário desta herança sincopada de mundo, que vivemos contemporaneamente. O pertencimento de uma forma de padecimento em mutação em um mundo em constante mutação.

E cabe a nós, psicanalistas, aceitar o desafio dessa nova forma de padecimento, sem esquecer sua pertinência à dimensão social contemporânea.

 

NOTAS

1 “O protótipo mítico do paciente do nosso tempo já não é mais Édipo e sim Hamlet”, in A. Green, Sobre a loucura pessoal, Rio de Janeiro, Imago, 1988, p. 66.
Retirado de: http://www2.uol.com.br/percurso/main/psc42/42Antonelli.html

 


Elisabeth Antonelli é psicóloga, psicanalista, mestre em Psicologia Clínica pela PUCSP, Membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, membro filiado do Instituto Durval Marcondes da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, professora do COGEAE/PUCSP.