Telefone: +55 11 3862-1703

Whatsapp: +55 11 98273-0550

Elisabeth Antonelli
junho 11, 2019

Twitter
Facebook
WhatsApp
LinkedIn
Copy Link

O Estranho e a Incompletude

Somos seres desejantes, que oscilam entre o desejo e o tédio, citando Schopenhauer, ou somos seres desejantes destinados à incompletude, e é isso que nos faz caminhar, como disse Lacan?

Fora de Si
Arnaldo Antunes

-Eu fico louco
Eu fico fora de si
Eu fico assim
eu fica fora de mim

eu fico um pouco
Depois eu saio daqui

Eu vai embora
eu fico fora de si
eu fico oco
eu fica bem assim
eu fico sem ninguém em mim

 

Parece que as duas afirmações se harmonizam.

O tema do estranho é muito caro, porquanto Freud o situa no campo da estética- uma teoria das qualidades do sentir. Menos ciência, mais humano enquanto humano.

O tema do presente texto visa o estabelecimento de relações entre o tema do estranho, a incompletude e a produção delirante como operação que visa negar a castração. Para exemplificar trarei um exemplo clínico, no qual procuro compreender de que modo a produção delirante estaria a serviço de negar a incompletude, o sentimento de desamparo, a castração. E como a insanidade promove o sentimento do estranho.

Citando Freud: “Jentsch toma como ótimo exemplo dúvidas quanto a saber se um ser aparentemente animado está realmente vivo; ou, do modo inverso, se um objeto sem vida não pode ser na verdade animado; e, ele refere-se , a esse respeito, à impressão causada por figuras de cera, bonecos e autômatos engenhosamente construídos.A estes acrescenta o esttanho efeito dos acessos epiléticos e das manifestações de insanidade, porque excitam no espectador a impressão de processos automáticos e mecânicos, operando por trás da aparência comum  de atividade mental”(1969,p244). Pretendo seguir na pista que indica que na insanidade, na produção delirante, bem como a inacessibilidade do paciente face à tentativas de introuduzir qualquer argumento lógico criariam o efeito do estranho familiar, assustador.

Amália, face a dificuldade em compreender progressivamente o mundo, e após perdas sucessivas, passa a relatar uma produção delirante que aparentemente a ajuda a sentir que tem algum controle sobre o mundo. Entretanto ela vai progressivamente se tornando estranha e assustadora para os que com ela convivem.

Amália já vinha carregando um importante processo psicótico, desde a sua juventude. Sempre se considerou melhor que os irmãos, que os colegas. Quando jovem, se via algum grupinho na calçada, conversando animadamente, tinha certeza que estavam caçoando dela. Tomava satisfação!

Ao mesmo tempo, dona de uma grande inteligência, se aplicou aos estudos e teve muito sucesso profissional, que de certa maneira encobriu suas esquisitices, afinal, quem não tem esquisitices? Devemos ressaltar que em sua trajetória também foi muitas vezes capaz de grandes manipulações, especialmente no que se refere a esconder a sua “loucura”. O mundo era uma tela de projeção muito segura para Amália, até ela envelhecer e precisar de ajuda.

Seu primeiro surto de deu aos 72 anos, em meio a grande agitação. Tinha certeza que tinha morrido, então outra personagem surgiu. Nesse estado parecia ter sido tomada por uma espécie de automatismo, com movimentos repetitivos parecendo inclusive se tratar de algum quadro orgânico, hipótese que foi descartada. Ela levou cinco dias para sair da crise maníaca, na qual apresentou uma força desmesurada, para idade e para o estado físico que ela apresentava na ocasião. Teve uma internação de um mês. Nessa época não aceitava tratamento psiquiátrico, muito menos psicoterapêutico.

Quando vai se recuperando relata ter tido um sonho…Desde sempre ela não conseguiu lidar com o não saber. A incompletude se fazia presente e ela negava, comprando, fazendo fofoca, brigando e chupando o dedão. E se isolando progressivamente. Apagava as luzes do seu apartamento para que não soubessem que estava em casa. Negava a necessidade de contato, se alimentava de modo bizarro, usava roupas chamativas e muita maquiagem e odiava que a chamassem de velha. Ela era jovem, porque assim decidira. Mas o tempo passa

Foi acolhida pela filha, que teve que interditá-la. Ela ficou muito furiosa, tratando mal que tentasse ajudá-la. Conseguia fazer até os médicos acreditarem que a louca era a filha! Deu bastante trabalho, mas começou psicoterapia, primeiro em um CAPS, posteriormente particular, e tem conseguido avanços notáveis.

Entretanto, uma irmã vem a falecer sozinha na própria casa e só é encontrada quinze dias após seu óbito. Amália passa ver bichos, espécies de vermes que a infernizam. E, progressivamente vai se tornando uma figura que assusta aos seus familiares. Chega sorrateiramente, anda desgrenhada pela casa, sai correndo do quarto, enche o quarto com água, usada para espantar os bichos. O efeito é assustador e também aversivo. O medo que ela sente vem do mundo externo. Teme os familiares. Um ser que era para ser uma avó e vai se tornando uma monstruosidade.

Penso que este exemplo traz à tona alguns elementos do estranho que Freud aponta, em especial o retorno do recalcado. Podemos pensar se essas vivências estariam a serviço de uma espécie de demarcação das agitações do conflito do eu com o seu recalcado, e o conflito narcísico entre o eu e o seu entorno.

Amália traz para o convívio familiar todo o medo reprimido pelos adultos à sua volta. E provoca neles o horror ao retorno do reprimido. Torna-se estranha na sua vivência delirante.

Podemos dizer que psicótica, falta a ela um suporte que prenda o processo simbólico, como uma âncora que impeça o deslizamento contínuo do significante sobre o significado, estabelecendo deste modo uma relação particular com a linguagem. O delírio funcionaria como tentativa de construção ou melhor dizendo, de reconstrução do significante primordial. Reproduz pela metáfora delirante aquilo que não foi possível no simbólico. Uma forma de enunciar a verdade, a sua verdade.

“Com a psicose, somos constantemente lembrados do real que nos acomete, estamos em casa, mas estranhamos a casa, pois esta foi, para os neuróticos, esquecida. Na psicose, há a experiência de ruptura do laço social com o Outro, transportando o sujeito para uma condição trágica, posto ele ser tomado pelo impossível de suportar- o Real. A psicose nos dá notícia desse irremediável a que estamos submetidos: fomos tomados por um Outro que nos alienou ao seu desejo. Todos nós tivemos que nascer duas vezes: biológica e simbolicamente. Nos dois casos, precisamos de um Outro/outro que nos dá vida. Tanto aquele Outro primordial – que em nossa cultura chamamos de mãe- quanto o Outro como lugar simbólico portador da lei. Qual é essa Lei? A que possibilita acender ao mundo como sujeito.” (Alves, p17) Esse Outro ao qual o nosso desejo necessariamente se aliena, produz em casos como o de Amália a perda da noção de si. Ela se torna inacessível, como se todo o edifício construído no seu desenvolvimento psíquico ruísse, e dos escombros visualizássemos apenas as fundações. Lúgubre perspectiva, dado que nos afeta diretamente, somos feitos das mesmas fundações

Em seu texto O sentimento de si e o estranho, (2019, p195-212), De Martini e Coelho Junior dialogam com este tema da perda do sentimento de si. A partir de seus estudos sobre o tema do estranho, apontam que Freud demonstra ser necessário o encontro de dois elementos para que a experiência do estranho surja, a saber, um elemento estético (produção do lúgubre) e um psicanalítico (o retorno do recalcado e a reativação de um modo de funcionamento mental primitivo). Os autores demonstram que Freud aponta para um terceiro elemento, dado que essa junção pode vir a falhar. E esse terceiro elemento, não enunciado no texto freudiano, vai sendo deduzido por eles, a partir dos termos do final do texto, quando Freud traz elementos da literatura na tentativa de demonstrar a necessidade da produção da vivência do inquietante. Para os autores “a condução na experiência narrativa corresponde, em termos psicológicos, ao deslocamento do sentimento de si para fora de seu lugar habitual, o que também acontece na experiência do estranho na vida comum” (p197)

Quando Amália enlouquece, ela fica fora de si, podemos dizer assim. Citando o texto deles novamente:

“A tensão entre o familiar e não familiar se produz, enquanto experiência, quando os efeitos lúgubres e o retorno do recalcado levam o sentimento de si para fora do eu, ou para partes suas clivadas, ou ainda para aspectos dos objetos internalizados. É preciso estar momentaneamente “fora de si”. Isso pode acontecer pelo ressurgimento de um modo de funcionamento mental anterior à delimitação entre mim e não eu, pela reversão das posições ativa e passiva das pulsões (ambivalência), ou ainda pela tomada de consciência de aspectos do eu não integrados. São experiências que perturbam a impressão homogênea do eu” (idem)

Amália se considera muito capaz de ficar sozinha, já que se isolou na maior parte de sua vida. Mas, conforme o processo analítico segue, pudemos construir juntas a compreensão sobre seu sentimento de desamparo (o frio que sente nestes momentos) e a angústia de separação, que nunca pode sequer ser contemplada.  Amália é a segunda filha de uma prole de dez filhos e sua mãe não tinha condições de dar sustentação psicológica aos filhos e filhas. Então, embora ela não alcance este conteúdo, podemos criar a hipótese de que, face a separações, ele fique acompanhada de bichos. Deste modo nada lhe falta. Porém causa-lhe horror, estranhamento, inclusive de ninguém ver tais bichos. E, os familiares tem que arcar com aspectos lúgubres e estranhos dela. Tudo muito difícil.

 

Bibliografia

De Martini, Coelho Junior:   O Sentimento de si e o estranho, Revista Brasileira de Psicanálise vol. 53, n° 1 ,195-212,2019

Freud, S:      O “Estranho” (1919), vol. XVII da Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, RJ, Imago Editora, 2006

Santos, Snaider Alves: Considerações sobre as especificidades da estruturação da psicose da Infância   e do adulto:
https://repositorio.ufu.br/bitstream/123456789/17207/1/SSantosDISSPRT_I.pdf, acesso em 09/06/2019