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Elisabeth Antonelli
maio 4, 2002

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Eu fico com esta dor…

Sobre a possibilidade de um futuro.

Um dia, sem mais nem menos, a gente se dá conta que esta há muito ,mas muito tempo zangado. Mas com o quê mesmo? Não se sabe. Só restou aquele ar ou tristonho ou emburrado, que todo mundo já se acostumou a achar que é o jeito de adultos mesmo. Uma ruga de expressão, um se curvar para frente ou para trás e esta tudo muito mais opaco e sombrio. Poderíamos ficar enumerando infinitamente as formas de expressão deste estar zangado. Quando a gente é pequeno ,em geral ,ou a gente mais ou menos sabe, ou a mamãe diz para a gente “_Fulaninho, não fica aí zangado que já passa…”

Em geral esta zanga esta associada a alguma experiência de perda :de um brinquedo que quebrou, de um amigo que muda cidade, de pessoas amadas que morrem, de uma discussão com alguém importante para mim, de um amor , de um ideal, de uma ilusão. Quando se é jovem o futuro é pura possibilidade , incluindo a possibilidade de ser.Conforme vamos vivendo , a realidade de nossas limitações e talentos se impõe. A nossa maior perda é da onipotência. Já viu com se acha um rei o bebê, aliás “Sua Majestade o Bebê!”. Vamos perdendo tanto pela vida afora que é como se não conseguíssemos mais nos recuperar das perdas.

Chamamos a possibilidade de elaborar as perdas de trabalho de luto. O próprio psiquismo “trabalha” neste sentido,tal qual nos sonhos.Mas a própria aceitação da realidade da perda é um processo complicado. Segundo Freud em “ A desilusão da Guerra” dentro de nós não temos, imediatamente ,uma representação para a experiência de perda, por exemplo, de um ente querido.Esta representação só é constituídasecundariamente, a partir da necessidade de lidar com o outro dentro de nós, ou seja, com a identificação que temos com as pessoas que amamos e que é um processo de vinculação peculiar.O trabalho de luto ,portanto exige que nos responsabilizemos pelo vínculo, sozinhos, depois da perda.E esta perda ,é vivida de modo mais dramático com as pessoas que amamos, mas pode ser de qualquer vínculo que temos, por exemplo crenças, idéias, ideologia,expectativa, esperanças,sonhos, promessas não cumpridas e por aí afora. A coisa complica.

Usando este referencial, o primeiro passo que se segue à experiência de perda é a negação.E muitos param por aí.Se por acaso eu me decepciono com meu partido, posso usar com recurso: “Não era bem meu partido mesmo”. Ou, não estava nem aí, não gostava mesmo dele(a). Quanto movimentos sociais, ao se perderem, deixaram uma legião de eternos emburrados? Ou na pior das hipóteses, pessoas “lights”, que de maneira alguma querem se expor ao risco de uma perda. No vinco daquela ruga de noites sem dormir, de choro infinito o quê mais senão o tal do botox? Afinal nossa sociedade contemporânea funda-se praticamente na negação das perdas e dos vínculos. Ao sucesso…
Em seguida, existe a tentativa de um cambalacho,uma maracutaia,por exemplo tentar substituir imediatamente uma relação por outra ,comprar coisas, comer, enfim “colocar algo” no lugar para não ter que enfrentar o vazio.Mas em geral isso não funciona tão bem como a negação acima descrita.O buraco fica lá apitando.Ou você fica uma espécie de caricatura de você mesmo um horror .Em geral , aí vem uma tempestade. A porca torce o rabo, como se diz..Neste momento, nos melhores casos, ou de maneira “ótima” advém uma percepção ,digamos mais realista da realidade da perda, a nível interno, ou seja da percepção da realidade psíquica da perda.Abre-se o espaço de liberdade para
uma ação reparadora.Só quando a perda acontece de fato, por assim dizer, dentro de nós, podemos lidar com ela.

O filme, atualmente em cartaz ”O Quarto do Filho”, pode nos servir de exemplo para pensar esta questão.`Após a perda do filho, mesmo com todo o cuidado que é mostrado, com o enterro,com o caixão, é pouco.Quando é feita a tentativa de voltar à vida “normal”, pulando de certa maneira a necessidade de um maior retiro e recolhimento, a dor se torna insuportável, a tal ponto que o pai, na sua atividade clínica se desinteressa pela dor dos seus pacientes, que é condição sine qua non para este tipo de atividade.Pensamos que aqui aparece a condição de um trabalho de luto que, por ter começado com uma negação muito acentuada, deixa como seqüela uma impossibilidade.Ele não quer mais nenhum “filho”. Nada mais serve. Acreditamos ser este um belo exemplo deste tipo de dificuldade que tentamos esboçar.

À medida que um luto pode ser elaborado, metabolizado,digerido,sofrido,um campo de ação maior se abre para o sujeito,tendo em vista a atividade reparadora gerada pela perda e a necessidade de manutenção do vínculo que pode ser com um idéia, uma Instituição,um traço de caráter.Vislumbra-se desta maneira uma abertura para o futuro, a partir de um passado repleto de experiências significativas.Como se diz “confesso que vivi”.Este deveria ser um lema .Vai aqui como a proposta de possibilidade, menos rancorosa, embora mais trabalhosa. O filme citado acaba tendo como grande mérito trazer à luz um tema tão rechaçado pela indústria cinematográfica e, de tão difícil digestão na nossa pós -modernidade.


Elisabeth Antonelli é psicóloga, psicanalista, mestre em Psicologia Clínica pela PUCSP, Membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, membro filiado do Instituto Durval Marcondes da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, professora do COGEAE/PUCSP.

Este artigo foi publicado na revista Psicologia Viver em maio de 2002 , sob o título: Aprendendo a perder.